ABOLIÇÃO DOS TESTES COSMÉTICOS?

Por Dr. phil. Sônia T. Felipe
Escrevi, no dia seguinte ao da aprovação do Substitutivo ao Projeto de Lei Nº 6602/2013, proposto pelo Deputado do PDT do Maranhão, Weverton Rocha, alterando completamente o texto inicial do projeto apresentado pelo Deputado do PSD de São Paulo, Ricardo Izar, que o uso de animais em testes cosméticos e de perfumaria não havia sido abolido aqui no Brasil, e, sim, regulamentado. Foi o que bastou para que passasse a receber agressões e ofensas de pessoas que se autointitulam as únicas verdadeiras defensoras ativistas dos animais, ofensas que não cabe aqui apresentar, mas o farei oportunamente. Vamos então ao que interessa discutir.
Para não deixar dúvidas quanto à minha opinião sobre o que de fato foi relatado e aprovado entre 4 e 5 de junho, vou citar entre aspas os dois textos. Cada pessoa que os ler tem capacidade para julgar se o uso da vivissecção cosmética ficou “abolido”, ou não, no Brasil. O texto de uma lei é o material sobre o qual os direitos de todos os envolvidos são interpretados. Se uma lei admite determinada prática e coloca limites a ela, jamais poderá ser considerada uma lei abolicionista. No máximo, é uma lei para regulamentar o uso dos animais nesse tipo de vivissecção. Imagine uma Lei que estabelecesse regras para o estupro. Ela não seria abolicionista do direito de estuprar.
Muitos dirão que a lei aprovada que seguiu para o Senado já é um avanço. Eu digo que continua a ser um avanço sobre os direitos dos animais, pois agora sim, a vivissecção para fins cosméticos está regulamentada no Brasil. E isso foi feito de um modo danoso para os animais e, segundo termos constantes do voto do Relator, Deputado Weverton Rocha, “contemplando o acordo feito entre os interessados, o Governo [e] o autor da proposição.”
Antes, com a Lei Arouca, podíamos questionar a vivissecção por sua ineficiência na cura de doenças e por sua futilidade na produção de produtos de beleza e higiene e pela trivialidade no trato da vida de milhões de animais destruídos nesse tipo de experimento. Agora, os vivissectores nos mostrarão o parágrafo 7º do Artigo 14 da Lei nº 11.794 para provar que o que fazem é “legal”. E o farão com a assinatura “dos interessados (que não sabemos quem são), do Governo e do próprio autor” do projeto inicial, que não abria exceção para caso algum.
Nos termos inseridos pelo Relator, o Deputado Weverton Rocha, no texto proposto pelo Deputado Ricardo Izar, autoriza-se a vivissecção cosmética e perfumática em todos os casos de componentes que nunca tenham sido testados, quer dizer, novos ingredientes. Esse tipo de redação abre para testes de quaisquer novos produtos, algo que a indústria cosmética sonha poder continuar a fazer no resto do mundo, mas já não pode mais na União Europeia, na Índia e em Israel. Então, sobra, que eu saiba, a China e o Brasil.
É bom que tenhamos em mente que todos os novos perfumes, as novas sombras, os novos batons, os novos esmaltes, cremes hidratantes, shampoos, sabonetes, rímel, bases, se são novos é porque têm em sua composição algo ainda não testado. Podemos pensar que os ingredientes de um desses produtos já foram testados, tanto que o produto recebeu autorização da ANVISA para ser comercializado. Mas, a cada lançamento de algo novo, que permite às marcas competirem sem parar com suas concorrentes, o produto final e seus componentes específicos têm que ser testados.
Mesmo que um produto de limpeza, de higiene, de maquiagem ou beleza seja conhecido e seus componentes tenham sido testados antes, individualmente, no momento em que um desses componentes é misturado a outro qualquer e essa mistura nunca tenha sido testada, ela passa a ser considerada uma nova composição e para fazer o produto almejado vai precisar provar que não produz reações danosas aos tecidos do corpo humano com os quais entrará em contato. O substitutivo do Deputado Weverton Rocha abre a porta para tudo isso, quando o texto original do Deputado Ricardo Izar não o havia feito.
Aqui estão os dois textos, para que cada pessoa possa conferir:
Texto do Projeto de Lei Nº 6602/13 do Deputado Ricardo Izar:
“§ 7º É vedada a utilização de animais de qualquer espécie em atividades de ensino, pesquisas e testes laboratoriais com substâncias que visem o desenvolvimento de produtos de uso cosmético em seres humanos.”
Texto Substitutivo Lei Nº 6602/13 apresentado pelo Deputado Weverton Rocha e aprovado:
“§ 7º É vedada a utilização de animais de qualquer espécie em atividades de ensino, pesquisas e testes laboratoriais que visem à produção e ao desenvolvimento de produtos cosméticos, higiene pessoal e perfumes quando os ingredientes tenham efeitos conhecidos e sabidamente seguros ao uso humano ou se tratar de produto cosmético acabado nos termos da regulamentação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.”
Não precisa dizer, mas faço-o apenas para refrescar a memória de quem lê isso pela primeira vez ou não estuda a questão da vivissecção, que nenhuma firma paga para que façam testes de substâncias conhecidas ou já testadas. Mas, quando essas substâncias são misturadas com outras e a sinergia delas não é conhecida, então, sim, os testes são feitos, porque uma coisa, por exemplo, é usar álcool para desinfetar as mãos, algo que quase todas as pessoas podem fazer sem terem reações alérgicas. Outra, é misturar o mesmo álcool com alguma outra substância, conhecida ou não conhecida e esfregar na pele. Separadamente, cada uma delas pode ser inócua. Quando misturadas, a reação na pele pode ser catastrófica: manchas, coceiras, lesões e até câncer podem ocorrer.
Então, cumprindo meu dever de filósofa ativista abolicionista, que é o de decodificar o sentido de textos e interpretar para todos os lados suas aberturas, deixo aqui essa explanação. Se o substitutivo do Deputado Weverton Rocha não for abolido pelo Senado, teremos com essa lei, no Brasil, para júbilo de todas as marcas cosméticas do mundo, a regulamentação da vivissecção cosmética e perfumática da Lei Arouca. Com o texto ora aprovado na Câmara Federal, não tivemos a abolição dos testes cosméticos no Brasil. As grandes marcas de cosméticos e perfumes, que hoje não podem mais operar na Europa, estão torcendo para que ninguém aqui em nosso país perceba a diferença entre regulamentar e abolir uma prática. Se há exceção, insisto, a prática não foi abolida, foi apenas regulamentada. Para que essa Lei fosse abolicionista o parágrafo deveria ser redigido assim:
“§ 7º É vedada a utilização de animais de qualquer espécie em atividades de ensino, pesquisas e testes laboratoriais de ingredientes e produtos acabados de cosmética e perfumaria.”
Assim, sem deixar brecha alguma, a Lei teria perfil abolicionista. Como foi aprovada, não aboliu coisa alguma, porque ninguém gasta dinheiro testando ingredientes ou produtos já reconhecidos como inofensivos à pele humana. Esse texto ilude. Diz apenas que é proibido fazer algo que ninguém faz, do tipo: é proibido andar com os pés para o alto e a cabeça pisando no chão.
Todos que conhecem meu trabalho de mais de vinte anos, pesquisando, escrevendo livros, artigos, colunas, debatendo e enfrentando, sozinha, sem nenhuma ONG me dando cobertura, a ira dos conservadores pelo país afora, e introduzindo os argumentos para a construção de uma ética animalista abolicionista vegana na moralidade brasileira, sabem o quanto eu gostaria de festejar a abolição do uso de animais em todos os testes, não apenas nos cosméticos. Mas não posso festejar nada, porque, com o texto substitutivo do Deputado Weverton Rocha ao projeto original do Deputado Ricardo Izar, não aconteceu a abolição dos testes cosméticos. Apenas sua regulamentação.
O texto do projeto original do Deputado Ricardo Izar (PSD, SP) está disponível neste endereço.
O substitutivo do Deputado Weverton Rocha (PDT, MA) aprovado está disponível neste endereço.


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Sônia T. Felipe | felipe@cfh.ufsc.br
Sônia T. Felipe, doutora em Teoria Política e Filosofia Moral pela Universidade de Konstanz, Alemanha (1991), fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC, 1993); voluntária do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis (1998-2001); pós-doutorado em Bioética - Ética Animal - Univ. de Lisboa (2001-2002). Autora dos livros, Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais (Boiteux, 2003); Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas (Edufsc, 2006); Galactolatria: mau deleite (Ecoânima, 2012); Passaporte para o Mundo dos Leites Veganos (Ecoânima, 2012); Colaboradora nas coletâneas, Direito à reprodução e à sexualidade: uma questão de ética e justiça (Lumen & Juris, 2010); Visão abolicionista: Ética e Direitos Animais (ANDA, 2010); A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos (Fórum, 2008); Instrumento animal(Canal 6, 2008); O utilitarismo em foco (Edufsc, 2008); Éticas e políticas ambientais (Lisboa, 2004); Tendências da ética contemporânea (Vozes, 2000).
Cofundadora da Sociedade Vegana (no Brasil); colunista da ANDA (Questão de Ética) www.anda.jor.br; publica no Olhar Animal (www.pensataanimal.net); Editou os volumes temáticos da RevistaETHIC@,www.cfh.ufsc.br/ethic@ (Special Issues) dedicados à ética animal, à ética ambiental, às éticas biocêntricas e à comunidade moral. Coordena o projeto: Ecoanimalismo feminista, contribuições para a superação da discriminação e violência (UFSC, 2008-2014). Foi professora, pesquisadora e orientadora do Programa Interdisciplinar de Doutorado em Ciências Humanas e do Curso de Pós-graduação em Filosofia (UFSC, 1979-2008). É terapeuta Ayurvédica, direcionando seus estudos para a dieta vegana. 

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